domingo, 4 de dezembro de 2011

O que não se deve pagar



«A auditoria vai ter que distinguir entre vários tipos de dívida. A primeira dívida é a dívida legítima, a dívida legítima é aquela que cumpre a lei e onde há uma igualdade, digamos, de posições negociais entre credores e devedores. Um interesse de credor e devedor mais ou menos equilibrado, ao qual subjaz um interesse público do país que contrai a dívida. Portanto não é apenas cumprir a lei a lei, é ter esta ideia de igualdade que permite que as condições não sejam muito adversas para o devedor. E portanto a ideia do interesse público é fundamental.
A dívida ilegítima é a dívida em que, de alguma maneira, nós já não temos a situação de igualdade nas circunstâncias em que os credores e os devedores se juntam, e portanto temos aqui dívidas que já favorecem de uma maneira completamente injusta os interesses dos credores e portanto lesam o interesse geral.

Há também a dívida legal. A dívida legal é aquela dívida que cumpre. Ela pode lesar o interesse nacional, mas pode ter cumprido todas as leis. Mas também pode ser uma dívida que à partida não cumpriu lei. Portanto, se ela não cumpriu lei é ilegal. Independentemente de ser legítima ou ilegítima, é ilegal. Uma dívida ilegal, não se deve pagar.
Portanto: a dívida ilegal não se deve pagar, a dívida ilegítima não se deve pagar.
Há depois a dívida odiosa. A dívida odiosa são os compromisso normalmente assumidos – isto tem acontecido muito pelo mundo, enfim, não será aqui o nosso caso – assumidos pelos regimes autoritários (como uma parte da dívida grega que ainda da vem da ditadura, mas isso é outra coisa).
Por último: a dívida sustentável. Nós temos que ver se a dívida é sustentável ou insustentável. Fundamentalmente, aqui a sustentabilidade aqui tem que ver com a possibilidade de pagamento, mas, mais do que isso, com as condições para que o pagamento tenha lugar. Ou seja, com o crescimento e com o emprego. Não há outra maneira de podermos realizar isto.»

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«Portugal não estava preparado para eles agora, na medida em que as condições em que o FMI esteve aqui antes não têm nada a ver com as condições em que a gente está neste momento. Portugal nessa altura tinha outros instrumentos para resolver a crise, que não tem agora precisamente porque estamos dentro do euro. E é por isso que podeis pensar que tudo o que nós decidirmos aqui é importante para a Europa no seu conjunto, e portanto temos também essa responsabilidade.
Pode ser que a Europa, neste momento, a do Norte não esteja a cuidar muito da do Sul, mas nós temos que cuidar da Europa, no meu entender, no seu conjunto. Porque senão não se justificaria que três países que não são mais do que seis por cento do PIB europeu estejam a causar tanta comoção na Europa. É evidente que muito daquilo que a gente disse se está a verificar. É que realmente depois do euro, de facto já não há dívida grega, já não há dívida portuguesa, já não há dívida irlandesa; há dívida europeia. E se essa dívida fosse tratada imediatamente como dívida europeia, não teríamos a especulação financeira e obviamente o problema estaria resolvido.
Acontece que não foi esse o entendimento, e a apelação neste momento é tarde e a más horas. É tardíssimo para a Grécia, um país que está a ser dilacerado, apesar de ser o país de onde nasceu toda a democracia que agora se volta contra ela. E nós não gostaríamos de modo nenhum que Portugal ou a Espanha ou outro país - nem a Grécia, com quem temos que ter muita solidariedade - passassem por isso.
Portanto, há aqui muitas variáveis desconhecidas nisto. Agora só não há uma variável desconhecida: e com isso eu concluo: é que realmente nós temos que agir. É que nós não podemos estar à espera. Já estamos a ver que as instituições europeias ou nacionais não se mexem senão por pressão pública.
Não pensem que o que está a acontecer agora, de finalmente o senhor Sarcosy a ter um momento de esperança e de lucidez, também eu diria, de realmente tentar fazer alguma coisa pela Grécia, é porque ele está a ver como nós as imagens da televisão. E está a ver que qualquer dia se as pessoas não pagam as portagens, não pagam o metro, não pagam os impostos, não pagam nada, não pagam nada ao Estado, como fazer contas? Já não se pode fazer contas. E estes homens, se lhes colapsam as contas, são mais frágeis que nós. Porque a força deles são as contas. Portanto, eles querem que a gente continue não só a fazer contas como a pagar contas. No momento em que os países deixam de pagar as contas, eles já não sabem fazer contas Isto é que é o nosso poder. O nosso poder é criar uma situação em que eles realmente já tenham dificuldade em fazer contas.
E portanto, como sabemos que isso significa muito sofrimento também para os portugueses, nós gostaríamos de fazer uma pressão, que é esta pressão organizada, com a sociedade civil, bem organizada, com grande petição, muito organizada, no sentido de fazer uma pressão, que eles vejam claramente: que ou respondem à nossa pressão e dão os passos que têm que ser dados, ou então a pressão será muito mais desordenada, será muito mais difícil para todos nós, obviamente, mas também será difícil para eles. Porque é isso efectivamente que nós temos que saber. Porque sabemos hoje, e esta é minha nota final, aquilo que disso o senhor Keynes, que é perfeitamente claro: se eu te devo uma libra, o problema é meu; se eu te devo um milhão de libras, o problema é teu.
Portanto, se há estas dívidas todas que foram criadas – e o Eric vai falar sobre isso – a culpa não é só dos devedores. Quando há dívidas deste tipo a culpa é dos credores. Então vamos lá analisar um pouco melhor as dívidas dos credores e dos devedores.
Ora bem, para isso, nós não podíamos ter escolhido melhor, para iniciar este tipo de trabalho, que o Eric Toussaint, um grande amigo meu de há muitos anos. Temos estado juntos no Fórum Social Mundial desde a primeira hora, e o Eric, que é um historiador e um politólogo, é o presidente do Comité para a Anulação da Dívida do Terceiro Mundo, e também um membro do Conselho Científico da Attac de França e da Attac de Bélgica, e participou numa das auditorias mais conhecidas hoje no mundo, que foi a auditoria organizada pelo presidente Rafael Correa no Equador. Ele foi um dos membros da Comissão e tem naturalmente uma experiência a dar-nos, não só para a auditoria como também para a reestruturação.
Nós vamos agora, o que nós propomos então é que agora a palavra é dele, estamos exactamente dentro da hora, como tínhamos proposto. Sobre o que vai falar: das dívidas, o que é auditoria da dívida e como se faz; e da sua experiência: veio agora da Grécia, tem estado em outros lugares. Depois fazemos um debate até à uma hora. Ele vai falar em espanhol, todas as pessoas o vão entender. Podem-lhe perguntar em português que ele também entende, não tem problema. E depois às 14 e 30 temos realmente um painel de ouro, porque temos realmente aqui dos melhores técnicos e comentadores que em Portugal têm vindo a tratar da questão da dívida, e vão estar cada um deles a dar a sua opinião, à qual por fim também responderá o Eric Toussaint.»
Boaventura de Sousa Santos no Seminário “O que fazer com esta dívida? O que é a auditoria e como se faz”, por Eric Toussaint, em 30 de Junho 2011, no CES – Centro de Estudos Sociais (Lisboa): http://www.ces.uc.pt/eventos/index.php?id=4011&id_lingua=1

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