domingo, 29 de maio de 2011

Manual do manifestante


Perante os recentes acontecimentos na acampada Barcelona, e em Setúbal, achamos que está na hora de recuperar um velho manual de resistência civil pacífica.

Provocações isoladas e agressões pessoais – responder pacificamente

O provocador-agressor não é candidato ao diálogo; não vem com a intenção de ser esclarecido. Traz um programa preciso, claro, determinado: criar um conflito violento. Por vezes nem sequer é um opositor ideológico ou sectário, apenas alguém com tendências violentas que acordou nesse dia com vontade de «molhar a sopa».
Por isso o que temos de fazer não é contrariar o seu discurso ou programa ideológico, mas sim contrariar o seu programa de acção. O programa de acção é o problema central de toda esta questão.
  1. O nosso discurso tem de ser razoável, simples, calmo, com as palavras bem articuladas. Uma fala exaltada, atabalhoada, em que as palavras se atropelam umas às outras é gasolina para a fogueira. (Cuidado! – articular bem não é o mesmo que falar como quem se dirige a uma criança ou a um débil mental!)
  2. Tudo o que dissermos tem de ser sincero. A emoção capta melhor o sentido das coisas que a razão (pelo menos nestas situações); de modo que um discurso dito sem convicção, ou mesmo com hipocrisia ou cinismo, pode actuar como provocação, fazer o agressor sentir-se gozado, e portanto piorar a situação.
  3. Enfrentar o agressor calmamente, olhos nos olhos. O olhar frontal sereno (não desafiador, evidentemente) é o primeiro travão da agressão. Virar a cara, baixar os olhos e mostrar medo aumenta os níveis de agressão.
  4. Nada de gestos bruscos. Movimentos lentos. Sempre que possível, devemos dizer ao nosso opositor o que vamos fazer, antes de fazer.
  5. Não há que ter medo de dizer o óbvio. Devemos dizer com toda a simplicidade, em voz controlada: «Está a gritar-me aos ouvidos» ou «Está a magoar-me o braço».
  6. O agressor traz um programa de acção preciso: chegar à violência, partindo do princípio que um acto de agressão implica necessariamente uma reacção violenta (ou fuga). Uma reacção não violenta, num tom completamente diferente do que seria expectável, consegue muitas vezes cortar pela raiz um programa de violência. Desconcertar um oponente é sempre a melhor forma de o fazer perder o fio à meada.
  7. Quem for capaz de acreditar que toda a gente possui um lado decente, terá a tarefa muitíssimo facilitada. Mesmo as pessoas mais brutais possuem algures uma centelha de decência que pode ser usada para esfriar a violência.
  8. Não te deixes bloquear perante a violência física; é muito difícil, mas respira fundo, acalma-te e verás como és capaz de improvisar. Se a primeira abordagem ao diálogo não resultar, pára, observa as reacções, e tenta encontrar a abordagem adequada àquele agressor em particular.
  9. Tenta induzir o teu opositor a falar (e a ouvir-se a si mesmo). Leva-o a falar sobre o que pretende, o que acredita, o que receia. Não faz falta contra-argumentar ideologicamente; mas é necessário deixar bem claro que não estás disposto a ceder a ideias de crueldade, violência e intransigência.

Procedimento individual durante uma carga policial

A arma mais poderosa para fazer frente a uma carga policial é o grupo de companheiros. Um manifestante isolado é uma vítima potencial. A maioria das regras de acção seguintes visam defender o grupo; é essa a melhor protecção individual.
  • nunca te deixes isolar! É crucial que nunca te apanhem sozinho! – a polícia de choque é mecanicamente treinada para um certo tipo de acção; se observares com atenção o filme acima, verás que a cena típica de espancamento consiste em 2 a 4 polícias espancando uma pessoa sozinha, mesmo quando ela já está caída no chão; repara que, nos confrontos de uma massa unida de manifestantes contra uma massa de polícias, a acção típica destes não é tanto baterem a sério, mas sim tentarem puxar alguém para fora do grupo; dá o braço aos teus companheiros, agarra-te firmemente a eles; mesmo que te batam com o cassetete e sintas vontade instintiva de soltar os braços dos teus companheiros para protegeres o corpo!
  • a melhor forma de combater um ataque de granadas de gases lacrimogéneos é, em vez de fugir, atirá-las para o campo da polícia, antes que comecem a deitar muito fumo (a saída do fumo é progressiva e passados alguns segundos o fumo é tanto que não te poderás aproximar sem ser gravemente afectado) – atenção! as granadas atingem rapidamente uma temperatura elevada, por isso usa luvas ou um trapo para não queimares as mãos – é mais fácil de fazer do que parece à primeira vista
  • se optares por te manteres numa zona segura, oferece-te para guardar os pertences, os documentos de identificação, etc., dos companheiros que estejam em confronto directo com a polícia
  • nos confrontos com a polícia, existe geralmente uma fronteira para além da qual a polícia prende pessoas, e uma área onde não são feitas detenções (geralmente atrás da linha da frente policial); procura perceber onde se situa essa fronteira
  • prioridade de protecção – além das crianças, deficientes, idosos, grávidas (como é óbvio), deve-se proteger as pessoas que estão a filmar os acontecimentos e garantir-lhes uma via de fuga; se houver muita gente a filmar, os que têm menos meios de divulgação devem sacrificar-se em favor dos outros, ajudando a criar a barreira de protecção
  • prioridade de sacrifício – custa dizer isto, mas se tivermos de mandar alguém para a «cabeça do touro», os primeiros devem ser as figuras públicas, os jornalistas e os advogados – são eles que trarão os melhores ganhos no rescaldo do confronto, e os mais aptos a terem ganhos imediatos no diálogo com os comandantes da força policial
  • se alguém for preso ou espancado, tenta saber o nome dessa pessoa – faz uma lista confidencial, a ser usada mais tarde nos tribunais e nos órgãos de comunicação; toma nota das circunstâncias e detalhes da detenção; procura tomar nota das pessoas dispostas a testemunhar; usa uma câmara, se tiveres
  • em caso de detenções, procura saber (vais ter de gritar um bocado...) se as pessoas que estão a ser levadas pela polícia necessitam de algum medicamento especial ou que alguém seja contactado com urgência (familiar, médico, advogado, etc.)

Preparação pessoal para um possível confronto policial

  • roupa prática, que permita movimentos soltos, correr; pouco felpuda (roupa muito porosa ou felpuda retém os gases e pode prolongar o suplício dos lacrimogéneos durante muitas horas) 
  • lentes de contacto – representam risco acrescido; retêm os gases lacrimogéneos durante mais tempo
  • traz sempre contigo uma mochila onde tens:
    • identificação – para quê dar motivos para detenções prolongadas e desnecessárias, por falta de identificação?
    • água, muita – além de a desidratação ser nociva só por si, uma das tácticas policiais consiste em reter as pessoas por longos períodos (na rua ou na esquadra), desidratadas, esfomeadas, porque isso baixa a resistência, a clareza de ideias e o ânimo
    • comida – algumas pessoas têm de comer qualquer coisa a intervalos regulares, sob pena de se sentirem muito mal e incapazes
    • caneta e bastante papel – podes ter necessidade de tomar notas ou escrever contactos para ajudar os teus companheiros
    • uma luva grossa ou um tecido para poder agarrar as granadas de gás lacrimogéneo e atirá-las de volta ao campo da polícia
    • um lenço suficientemente grande para te proteger a cara e o nariz, em caso de necessidade; se houver um ataque de gás lacrimogéneo, molha o lenço com água e cobre a boca e o nariz 
    • capacete, se tiveres; bem como caneleiras, cotoveleiras ou qualquer outra protecção que ajude a resguardar as zonas do corpo onde a polícia é treinada para bater preferencialmente; óculos estanques de piscina ajudam a suportar o gás lacrimogéneo
    • máquinas fotográficas, câmaras de vídeo, são armas preciosas
    • uma muda de roupa para o caso de a que trazes vestida ficar encharcada; cor e formato diferente da que trazes, para evitar uma identificação fácil 
  • procura saber quem são os organizadores ou coordenadores da manifestação – podes precisar de passar informações, pedir ajuda organizada, etc.
  • tenta decorar o número de telefone da organização da manifestação, se houver um
  • se a organização elaborar uma lista de presenças e contactos, procura garantir que fazes parte da lista, incluindo indicações sobre quem deve ser contactado caso sejas gravemente agredido ou levado pela polícia

Nota sobre as tácticas policiais

A polícia de choque tem um treino muito específico. As suas tácticas são puramente militares, e é como tal que devem ser entendidas.
  • objectivos tácticos da polícia:
    • romper o ânimo da multidão, intimidar, quebrá-la em pequenas porções «manuseáveis»
    • provocar a violência, para justificar política e judicialmente a sua própria violência
    • cercar ou encurralar, para impedir vias de fuga e aumentar o controle da multidão
    • identificar e deter os dirigentes da manifestação
    • recolher provas que permitam condenar e punir as pessoas detidas
  • coreografia básica da polícia:
    o primeiro objectivo da polícia será sempre quebrar a massa de manifestantes em pequenas porções e apanhar pessoas isoladas;
    a polícia tentará provocar a dispersão por meio de pequenas cargas de bastonada, cargas a cavalo, veículos blindados, balas de borracha;
    a dança obedecerá a alguns ou todos estes passos:
    • os polícias tentarão formar uma linha de cerco
    • atacando pelo centro ou pelo lado, tentarão dividir a massa de manifestantes em dois grupos: os «actores» e os «espectadores»
    • cargas breves de cassetete para tentar baixar o moral (mas mantendo ainda a linha policial coesa)
    • altifalantes poderosos, granadas secas (só para fazerem barulho), luzes muito brilhantes se for de noite – para desorientar a multidão; ruído muito alto provoca também desorientação mental e abranda o raciocínio
    • linhas de polícia efectuam cargas sucessivas (avançam, batem, recuam, voltam ao ataque) a fim de empurrar a multidão para uma zona escolhida pelo comando

Como responder à táctica policial

  • é crucial impedir a polícia de formar uma linha da frente!!
    para cercar as pessoas, impedindo-as de irem para onde querem, empurrando-as para a rua ou a zona que lhes convém, a polícia tem imperiosamente de formar linhas – isto é fácil de realizar se a multidão ficar estática
    é da maior importância impedir que a polícia forme as suas linhas da frente!
    se a multidão for esquiva, se se mantiver em movimento mais ou menos aleatório, a polícia desistirá de formar a linha da frente, recuará e formará linhas a distância; mas se a multidão for passiva, a polícia formará linhas da frente onde quiser, se for preciso até no coração da manifestação
  • não ficar parado a olhar, na expectativa!
    manter sempre o grupo em movimento
  • sempre que se formem «buracos» na multidão, tentar preenchê-los, manter uma massa coesa em movimento
  • tentar constantemente adivinhar para onde pretende o corpo da polícia de choque dirigir-se, e chegar lá antes deles!
    ocupar o território táctico que o comando policial tinha previsto provoca-lhes grande desorientação, as linhas policiais desfazem-se, o comando precisará de reavaliar a situação, e esse tempo constitui uma trégua preciosa
  • manter sempre, à cabeça da manifestação, faixas longas, firmemente seguras (a polícia tentará destruí-las); manter as faixas em baixo, tapando o corpo e as pernas, porque elas dificultam imenso os ataques intimidatórios e as cargas de bastonada
  • tentar manter as linhas de fuga e rectaguarda livres
  • se começar a haver divisão de grupos entre «espectadores» e «actores», reintegrar os espectadores no grupo principal
Finalmente, a polícia decidir-se-á a avançar para confronto directo.
Vamos partir do princípio que conseguimos conquistar o terreno táctico que nos convém a nós e não a eles, e que as linhas de fuga ficaram seguras lá atrás.
Nesta fase, o principal é dar os braços, resistir tenazmente a que a massa de manifestantes se desfaça em migalhas.
Um manifestante isolado e caído no chão é candidato ao espancamento impiedoso. Não há forma de salvá-lo, porque a táctica policial é a de dedicar 2 ou 3 polícias ao espancamento individual, enquanto 4 ou 5 formam barreira para o exterior.

A partir daqui, começa outra linha de actuação: como lidar com as detenções, com os companheiros feridos, com os tribunais e com a comunicação social. Deixaremos esta questão para outro artigo.

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